quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Ideologia versus reconhecimento público?

Bom dia, Valden. Meu nome é Olegario e escrevi um artigo sobre os conflitos entre a comunidade glbt e lideranças cristãs na aprovação do projeto de lei 6353/07. Gostaria de saber se é possível a publicação em Homo Habilis. Desde já agradeço, Olegario da Costa
por Olegário da Costa

A Associação de Travestis de Mato Grosso do Sul foi fundada em 13 de janeiro de 2001, sem fins lucrativos. Nos últimos 7 anos, a entidade vem desenvolvendo trabalhos de prevenção de DST/AIDS, através de parcerias com os conselhos municipal e estadual de saúde, e também com a Coordenação Nacional de DST/ AIDS(órgão de prevenção do Ministério da Saúde). O empenho da instituição em prevenção e redução de danos lhe valeu o reconhecimento pelo Conselho Municipal de Assistência Social de Campo Grande e a declaração de "utilidade pública" pela Assembléia Legislativa de MS¹. A entidade distribui preservativos e orienta para a prática de sexo seguro em visitas a locais de prostituição, praças, parques e bairros de periferia. Ela também orienta empresários de bares e boates. A ATMS ainda ajuda no trabalho de monitoramento dos casos de AIDS, buscando uma maior adesão ao tratamento, através do projeto Novos Sonhos.
Além desse trabalho que beneficia a todos, indistintamente, a ATMS realiza eventos, projetos e serviços voltados ao público específico GLBTT(Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais). Pode-se citar brevemente as paradas da diversidade sexual, serviço de assessoria jurídica em caso de abuso e discriminação, redução de danos no uso de próteses de silicone, formação de novas lideranças regionais e iniciativas que visam oferecer alternativas de subsistência(o projeto Fazendo Arte com a Arte).
Apesar de todo esse histórico de engajamento em atividades sociais da Associação, o projeto de lei n° 6353/07, que a declara de "utilidade pública", foi arquivado pela Câmara Municipal de Campo Grande. O projeto, proposto pelo vereador Athayde Nery(PPS), é o resultado de uma audiência pública para discutir direitos humanos, gênero e sexualidade, realizada no dia 23 de outubro, além de uma reivindicação de mais de 2 anos. No dia 16 de dezembro, na primeira apreciação, o vereador Pastor Sérgio(PMDB), presidente da Comissão Parlamentar de Finanças, pediu vistas ao processo. Apesar da justificativa formal ser a de preocupação com o orçamento do município, elementos adicionais indicam outra motivação.
A ATMS cumpre todos os pré-requisitos. É uma entidade sem fins lucrativos, possui CNPJ, suas dirigentes são pessoas idôneas e não remuneradas por seus cargos e já está em funcionamento há mais de 7 anos. Em MS, a lei n°3498, de 13 de fevereiro de 2008, regulamenta a declaração como de "utilidade pública". Comparando, então, a legislação e o estatuto da entidade se constata identidade de propósitos em diversas passagens. Cita-se o artigo 3°(incisos III, IV, V, XIII) da lei estadual e o artigo 3°(incisos a, b, c, d, e, g) do estatuto, envolvendo a promoção gratuita de saúde, assistência social, prevenção ao uso de drogas, promoção de integração ao mercado de trabalho, promoção de direitos estabelecidos, reivindicação por novos direitos e acessoria jurídica gratuita.
Se a Assembléia Legislativa a considera uma entidade de utilidade pública, porque será que a maioria da Câmara pensa diferente? De acordo com a justificativa que fundamentou o pedido de vistas , não seria uma questão de diferença de opiniões, mas sim uma preocupação com o erário. Ora, a ATMS mantém seu reconhecimento estadual de utilidade pública, sinal de que continua preenchendo os requisitos legais. E, pela simples análise das atividades desenvolvidas pela instituição nos últimos 7 anos, os vereadores poderiam ter corroborado a decisão dos colegas parlamentares. Afinal, nada mais estariam fazendo do que atender a um precedente lançado. Caso a preocupação com o erário ainda sirva como desculpa, em um ano de tramitação houve tempo suficiente para consultar os balanços contábeis da entidade. A falha em realizar esse tipo de consulta apenas depõe contra o (des-)interesse da maioria da Casa.
De fato, o pedido de vistas foi um estratagema para postergar a votação do projeto. Primeiro, porque diversos vereadores são lideranças de igrejas cristãs. Pastor Sérgio representa a Igreja Universal do Reino de Deus, Herculano Borges faz parte da Igreja Visão Celular, Lídio representa a Igreja Assembléia de Deus Missões, Flávio César, a Igreja Adventista do 7° Dia e Thaís Helena, a vereadora do PT com crise de identidade política, é católica. Por trás da estudada resposta de que o serviço prestado pela ATMS não é de caráter público, há na verdade motivações ideológicas bem definidas. "Nós defendemos a Bíblia e ela condena o homossexualismo. Um título como esse acaba divulgando esse tipo de comportamento", esclareceu o pastor da 1ª Igreja Batista, Ronaldo Leite**.
Por definição, um serviço é considerado público quando satisfaz as necessidades da coletividade. Isso não significa que todos os segmentos da sociedade devam concordar moralmente com uma medida para que seja aprovada. Trata-se de um equívoco muito comum. Mas é claro, a proposta não pode ferir direitos constitucionais, excluindo setores. O projeto de lei 6353/07, pelo que já foi exposto, não fere o direito constitucional de cristãos. Ele simplesmente atende a um precedente e confere a qualificação adequada por um serviço público que já vem sendo executado há anos. E, como a própria definição de serviço público esclarece, não faz diferença se o mesmo é executado pelo Estado ou se pela sociedade civil. É exatamente para o segundo caso que existe o mecanismo de subvenção social e, em caso de fraudes e mau uso do dinheiro público, a revogação está prevista na lei.
Portanto, o argumento empregado pelos vereadores da bancada "moralista" não tem nenhum fundamento concreto. Pior, ele se aproveita de um vício republicano muito forte em nosso país: negar o caráter público de um serviço sempre que há conflito com os interesses ou a ideologia do grupo dominante. Ora, isso é completamente irracional. Não apenas injusto com a comunidade GLBTT, mas injusto com a coletividade, já que poderia comprometer(ou limitar) o serviço prestado pela ATMS, o qual já é reconhecidamente de utilidade pública!
Tem tramitado no Congresso Nacional um projeto que prevê a criminalização da homofobia, ou seja, a punição criminal do preconceito e de atos de violência contra indivíduos GLBTT. Trata-se do PLC 122/06. Diversos blogs foram criados para denunciar a suposta falta de fundamento da proposta. Mais, blogs e igrejas pedem que fiéis protestem através do Alô Senado, uma espécie de ouvidoria sobre os projetos em tramitação. De acordo com a Secretaria de Pesquisa e Opinião Pública do Senado², o projeto 122/06 motivou 74% das ligações recebidas esse ano, 226 mil. Alguns desses blogs, como o de Valmir Nascimento³, negaram a relevância do projeto, baseando-se no "elevado" número de manifestações contrárias registradas pelo Alô Senado. É exatamente assim que se deve decidir matérias de interesse público, como se fosse a votação para escolher o vencedor do Big Brother, ou do Ídolos! Mais um exemplo da irracionalidade supramencionada. Engraçado que o segundo colocado(8,3%) em ligações recebidas pelo Alô Senado é o PLS 121/07, que cria a Contribuição Social para a Saúde, enquanto que o terceiro colocado(1,2%) é o projeto da reforma tributária (PEC 233/08). Pois é, então, no Brasil os cidadãos aparentemente se preocupariam mais em negar direitos aos GLBTT do que com a Saúde Pública e a Reforma Tributária.
Insistindo no erro, Nascimento compara as 226 mil ligações sobre o projeto com a pesquisa realizada pelo DataSenado, a qual contou com uma amostra de 1122 pessoas. Ora, aparte o erro crasso de se confundir aritmética com estatística, na verdade, não há nada de circunstancial contra a veracidade da pesquisa. Afinal, como se avalia a concordância com tal projeto em um país de mais de 189 milhões de habitantes, de variados credos, classes sociais, níveis de educação e grupos de interesses? A resposta é clara: através de uma pesquisa amostral, escolhendo pessoas aleatoriamente em diversas regiões do país, de diferentes classes sociais, anos de educação, e zelando pela proporcionalidade em termos da distribuição geográfica da população do Brasil. Para uma pesquisa estatística nesses parâmetros não importa tanto a quantidade(como seria em um censo), mas principalmente a qualidade. Aliás, as conclusões da pesquisa soam bem razoáveis, pelo menos para quem tem uma mínima noção sobre a geografia do país. 70% dos brasileiros seriam favoráveis à aprovação da proposta; o maior índice de opiniões favoráveis foi na região Sul(73%), assim como com pessoas com nível superior(78%), idade entre 16 e 29 anos(76%); a concentração de opiniões contrárias na região Centro-Oeste(55%), pessoas que cursaram até a quarta série do ensino fundamental(55%) e com mais de 30 anos(67%).
Significativo também foi a conclusão de que 70% dos católicos defende a criminalização da homofobia, sendo que a maioria de 55% dos evangélicos possui a mesma opinião. Isso apesar do Vaticano e das lideranças evangélicas ainda opinarem que o sexo entre pessoas do mesmo sexo é uma patologia, ou, pelo menos, um mal que destrói a sagrada família. Segundo a pesquisa realizada pelo DataSenado, haveria um descompasso entre o que pregam as lideranças católica e evangélica, de um lado, e os fiéis, do outro.
Em nosso estado, o preconceito e a violência contra indivíduos GLBTT são tratados pela Lei n°3157, de 28 de dezembro de 2005. Percebe-se pela formação de lideranças da comunidade GLBTT e pela conquista de direitos nos últimos anos, a Câmara de Vereadores de Campo Grande não está atenta à tendência jurídico-política da sociedade brasileira, pelo menos nesse aspecto.Finalmente, é importante lembrar que o Brasil é o campeão mundial de assassinatos de homossexuais, com 122 crimes em 2007. Os dados são do grupo Gay da Bahia*. Em relação aos indivíduos GLBTT no Brasil, existem poucos dados oficiais sobre o número de pessoas, inexistem dados oficiais sobre a violência e muito menos dados relativos à colocação no mercado de trabalho. Moções de apoio à aprovação ao projeto devem ser enviados a atms.ms@bol.com.br e athayde@camara.ms.gov.br

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